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O Exército na Berlinda
Samantha Buglione
Virou lugar-comum criticar a presença do Exército nas favelas do Rio de Janeiro. Não sei se isso decorre da lembrança da ditadura ou da mania de elevar o senso comum à condição de saber especializado. Uma vez que as violações de direito humanos continuam, inclino-me por esta última hipótese.
A Constituição estrutura um sistema de segurança pública no qual as Forças Armadas estão no topo da pirâmide, no sentido de ser o último bastião da manutenção da lei e da ordem. Utilizar as Forças Armadas pressupõe que todo o resto tenha deixado de funcionar em termos de recursos materiais, hierarquia e estratégia. Há também, na legislação, requisitos formais que precisam ser cumpridos para que se possa valer do Exército no âmbito da segurança interna.
Se as polícias e a Força Nacional estão estruturadas, não há razão para convocar as forças de defesa. É, no mínimo, uma rendição simbólica do Estado solicitar o apoio das Forças Armadas, principalmente quando se sabe que até milícias de policiais aposentados conseguem tomar uma favela e expulsar traficantes.
A questão, contudo, tem sido abordada por muitos no sentido de o Exército ser despreparado, truculento, autoritário, sem condições de atuar em ambiente urbano. Mesmo que isso fosse verdade (e não é), seria uma contradição absurda. Teríamos, então, que pedir ajuda estrangeira? Vale lembrar que a missão internacional de garantia da paz mais bem-sucedida no Haiti até hoje está sendo conduzida pelo Brasil. Países supostamente mais preparados, como França e Estados Unidos, não conseguiram obter resultados tão favoráveis.
As Forças Armadas brasileiras, em termos de recursos humanos, têm uma das melhores forças especiais do mundo - as vulgarmente conhecidas tropas de elite. Ocorre que uma vez que uma operação assume um caráter militar, o êxito exige regras universais e aí se esbarra no jeito brasileiro de ser. Não é possível "meias medidas", com políticos dando palpite, especialistas de plantão aprovando ou condenando determinada ação.
Até mesmo o Judiciário deve limitar-se ao controle da legalidade, sem adentrar no mérito administrativo da ação militar em si. O outro problema é ter permitido que a sociedade carioca tenha chegado a esse ponto e achar que o Exército pode dar conta de tudo, fazendo o mesmo papel que todos os outros já tentaram fazer. Não se pode tomar uma ação isolada de alguns soldados e condenar uma instituição inteira por isso.
Não estou justificando as mortes dos civis, mas alertando para outras questões: 1) o Exército é preparado tecnicamente para a ação e 2) o chamamento do Exército é um sintoma do fracasso da administração política para a questão da violência, por enquanto, no Rio de Janeiro. Tampouco defendo que a ordem e a vida civil sejam gerenciadas pelo Exército, apenas tento, aqui, problematizar as críticas e suas razões.
Se o erro de uns representa toda a instituição, por essa lógica teríamos de fechar para sempre a Câmara Municipal de Florianópolis. Veja a Igreja Católica, por exemplo. O Exército é uma das mais tradicionais e antigas instituições brasileiras. E como qualquer instituição histórica, conta com muitos erros e acertos. A formação dos quadros do Exército é de dar inveja a qualquer empresa privada. Pode parecer irônico por conta de nosso passado recente, mas nesse mundo globalizado, onde tudo é lucro, talvez o Exército seja uma das últimas trincheiras de um dever cívico. Ao menos, ainda é um espaço em que se fala em Estado-maior, hierarquia, respeito à Constituição e por aí vai.
A morte dos civis na favela do Rio é um sintoma, mas um sintoma de um problema muito maior que, certamente, não começou com a subida do Exército no morro. Se o Exército errou na ação é porque erramos todos na questão da violência urbana. Com panos quentes no consumo elitizado das drogas, com vistas grossas à violação de direitos fundamentais, com uma memória curta para a corrupção e negociações politiqueiras que alimentam favelas, miséria, tráfico e pobreza e tiram, de qualquer sociedade, a capacidade crítica de pensar civicamente.
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